Quality by Design: o (nem tão) novo paradigma de desenvolvimento de medicamentos

Por Gustavo Krumel Goelzer

Foi na segunda metade do século XX que Joseph M. Juran apresentou ao mundo seu conceito de Quality by Design (QbD), que foi absorvido pela indústria farmacêutica em 2009, quando o International Conference on Harmonisation (ICH) publicou o Guia Q8(R1) – “Pharmaceutical Development”. Esse conceito adentrou terras tupiniquins em 2019, na Instrução Normativa 47 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que trouxe a definição de QbD para a legislação brasileira, e na RDC 301 do mesmo ano, que tratou de forma abrangente requisitos de qualidade atrelados ao desenvolvimento.

Isso mudou tudo no processo de desenvolvimento de medicamentos. Até então, o desenvolvimento de um produto farmacêutico no Brasil, com foco em medicamento, tinha como objetivo garantir a tríade: segurança, qualidade e eficácia, atendendo aos requisitos regulatórios.

Contudo, a partir da introdução do QbD, chegar ao destino deixou de ser o mais importante, ou seja, entregar um produto que atende aos requisitos regulatórios, garantindo segurança, qualidade e eficácia perde o sentido quando não é explicado o caminho percorrido no desenvolvimento e o racional para as tomadas de decisões.

Além disso, realizar o desenvolvimento dentro deste (nem tão) novo paradigma mostra-se cada vez mais relevante, tanto para atender ao cada vez mais alto padrão de qualidade, bem como para facilitar mudanças regulatórias dentro do ciclo de vida do produto.

A iniciativa da abordagem de Quality by Design (nas traduções mais comuns: qualidade pelo desenho ou qualidade pelo projeto) na indústria farmacêutica se deve, com grande mérito, aos esforços da dra. Janet Woodcock, comissária do Food and Drug Administration (FDA), cuja visão ampla sobre a relação entre indústrias, órgãos reguladores e população indicava a necessidade de alteração do modo de trabalho entre as empresas e entidades reguladoras para atingir o grau de qualidade esperado pela população.

Para contextualizar, conforme a dra. Woodcock relatou em entrevista ao Regulatory Affairs Professionals Society, quando questionava o time de qualidade de algumas indústrias sobre qual seu o objetivo de qualidade, muitas vezes ela ouvia como resposta: nosso objetivo é passar na inspeção. Ela prontamente respondia que esse não é um objetivo de qualidade. Naquela época, as pesadas multas aplicadas pelo FDA nas empresas não estavam surtindo o efeito de melhora na qualidade dos produtos. Diante desse cenário, e dentro do contexto de harmonização entre as agências reguladoras por intermédio do ICH, a direção do que era esperado para a qualidade de um produto foi alterada, introduzindo critérios como objetivos pré-definidos, avaliações mediante o risco em qualidade e abordagem científica, sendo estes três pontos os pilares centrais do QbD. Dessa forma, espera-se que a empresa seja ainda mais consciente do produto que está desenvolvendo, obtendo, não só as provas necessárias para registro e pós-registro, mas obtendo conhecimento sólido sobre seu produto, conferindo sentido à frase que já é um jargão na indústria: a qualidade não pode ser testada nos produtos, deve ser construída por desenho/projeto.

De forma geral, para o desenvolvimento de um produto via QbD, deve-se inicialmente definir o perfil de qualidade alvo do produto, os atributos críticos de qualidade, os atributos dos materiais (insumo ativo e excipientes), os parâmetros de processo e selecionar o processo fabril adequado. Após estas definições, e buscando uma avaliação mais aprimorada do desenvolvimento, deve-se avaliar, de forma sistêmica, a interação destes fatores visando entender e refinar como os materiais (e seus atributos), bem como o processo (e seus parâmetros), impactam nos atributos críticos de qualidade, definindo assim os atributos críticos de materiais e os parâmetros críticos de processo, respectivamente.

É aí que começa a ficar interessante! Para isso deve ser utilizado todo o conhecimento prévio do time de desenvolvimento, o conhecimento disposto na literatura, conhecimento adquirido a partir dos ensaios e experimentos realizados (neste ponto o uso de Design of Experiments – DoE é uma ferramenta espetacular) e por último, mas não menos importante, toda esta avaliação deve ser realizada via ferramenta adequada de análise de risco.

A avaliação do risco é o guia que estabelece o que deve ser mais profundamente estudado, o que deve ser controlado dentro de especificações definidas e o que não representa impacto significativo, de forma a mitigar os riscos para nossa já citada tríade: segurança, qualidade e eficácia.

O uso de DoE permite a obtenção do design space (traduzido comumente como espaço de desenho), que é obtida pela análise multivariada da relação entre variáveis que podem impactar a qualidade do produto. Estabelecido o design space, deve-se definir a estratégia de controle (utilizando idealmente ferramentas de Process Analytical Technology – PAT) e acompanhamento para o gerenciamento dentro do ciclo de vida do produto.

Todo o processo resumido nos parágrafos anteriores carece de muito estudo, trabalho e investimento financeiro, mas os frutos colhidos prometem ser doces e saciantes. A partir do desenvolvimento que favorece o sólido conhecimento do medicamento, muitos benefícios costumam vir, concomitantemente, como:

  • Menor índice de retrabalho durante as fases 1, 2 e 3 do ciclo de vida do produto;
  • Menor índice de exigências nos processos de registro/pós-registro ou, no mínimo, maior embasamento para respondê-las;
  • Menor índice de reprovações em controle de qualidade lote a lote;
  • Menos surpresas para recolhimento de produtos do mercado;e
  • Futuramente, espera-se não ser considerado pós-registro quando alterações são feitas dentro do design space.

Espera-se, portanto, ao utilizar o paradigma do QbD no desenvolvimento, adquirir conhecimento suficiente sobre o produto a ponto de minimizar grande parte das surpresas que possam aparecer ao longo da vida do medicamento, e não só atingir os requisitos mínimos para registro e manutenção do produto no mercado.

Contudo, assim como não é o uso do pincel que faz do pintor um artista, não é o uso mecânico e procedimental das ferramentas de QbD que fazem o desenvolvimento de medicamentos ter sua qualidade definida pelo desenho/projeto.

A ferramenta, nesse caso, é um caminho para o que realmente importa: o interesse genuíno da empresa desenvolvedora em conhecer e ter domínio sobre o produto. É claro que essa mudança de racional de desenvolvimento não vem de uma hora para outra. Necessita de capacitação técnica, alteração de modus operandi das indústrias e investimento em diferentes tecnologias, como: sistemas, para gerenciamento do conhecimento adquirido; analítica, para onde for possível análise de qualidade via PAT; software, para avaliação multivariada dos estudos de DoE, além da capacitação dos atuais profissionais da indústria farmacêutica. É importante que o tema QbD seja abordado nas graduações de Farmácia do país para que a cultura de foco exclusivamente no resultado ceda espaço para o interesse no processo que leva ao resultado. Estamos preparados para isto?

Gustavo Krumel Goelzer é farmacêutico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com atuação em indústria na área de tecnologia farmacêutica, com experiência em troubleshooting, transferência de tecnologia e desenvolvimento galênico.

www.linkedin.com/in/gustavo-krumel-goelzer

Referências:

– MENEZES, J. C. (2018). Pharmaceutical Quality by Design: A Practical Approach. CRC Press.

– BEZERRA, Mariana Palmeira; RODRIGUES, Leticia Norma Carpentieri. QUALITY BY DESIGN (QBD) COMO FERRAMENTA PARA OTIMIZAÇÃO DOS PROCESSOS FARMACÊUTICOS. Infarma – Ciências Farmacêuticas, [S.l.], v. 29, n. 1, p. 5-12, apr. 2017. ISSN 2318-9312. Disponível em:

<https://revistas.cff.org.br/?journal=infarma&page=article&op=view&path%5B%5D=1899>. Acesso em: 07 apr. 2024. doi:http://dx.doi.org/10.14450/2318-9312.v29.e1.a2017.pp5-12.

– BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA), DIRETORIA COLEGIADA. Instrução Normativa – IN nº 47 de 21 de agosto de 2019. Diário Oficial da União, ed. 162, seção 1, p. 96, 22 ago. 2019.

– BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA), DIRETORIA COLEGIADA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 301 de 21 de agosto de 2019. Diário Oficial da União, ed. 162, seção 1, p. 64, 22 ago. 2019.

– MINETO, A. R. (2021). A abordagem Quality by Design no desenvolvimento de produtos farmacêuticos: conceitos, elementos e exemplos de aplicação. Disponível em:

<https://lume.ufrgs.br/handle/10183/238408?show=full> Acesso em 07 apr. 2024.

– INTERNATIONAL CONFERENCE ON HARMONISATION OF TECHNICAL REQUIREMENTS FOR REGISTRATION OF PHARMACEUTICALS FOR HUMAN USE. ICH Harmonised Tripartite Guideline: Pharmaceutical Development Q8(R2). 4ª versão, ago. 2009.

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