TCC premiado desvenda o controle de contaminação na produção de medicamentos estéreis
Por Ricardo Serrato
A produção de medicamentos estéreis talvez seja um dos maiores desafios da indústria farmacêutica contemporânea. Exige precisão científica, rigor regulatório e, acima de tudo, uma postura intransigente frente ao risco da contaminação. O tema, estudado com profundidade no trabalho de conclusão de curso (TCC) da aluna Karina Nicolau Dorna Silva foi aprovado com nota máxima na Pós-Graduação em Gestão da Qualidade e Formação de Auditores para a Indústria Farmacêutica do CDPI Pharma – Centro de Desenvolvimento Profissional Industrial.
Quando falamos em medicamentos estéreis, falamos de produtos destinados a vias de administração que ultrapassam as barreiras naturais de defesa do corpo humano. Soluções injetáveis, oftálmicas e implantes são exemplos claros de que um erro mínimo pode custar caro, não apenas em termos econômicos, mas em vidas humanas. Por isso, o controle de contaminação não é apenas uma etapa de qualidade, mas a essência de todo o processo de fabricação.
A literatura revisada por Karina reforça que esterilidade não é uma condição parcial: ou o medicamento está absolutamente livre de microrganismos e partículas, ou ele representa risco. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), alinhada a organismos internacionais como FDA, EMA e PIC/S, estabelece um conjunto de normas e resoluções que buscam evitar o que já ocorreu no passado: tragédias sanitárias decorrentes de falhas produtivas.
Casos emblemáticos, como o do Microvlar® nos anos 1990 ou o episódio do Celobar® em 2003, revelaram a gravidade de erros de processo e reforçaram a necessidade de normas mais rigorosas. Hoje, documentos como a RDC 658/2022, a IN 35/2019 e, em âmbito internacional, o EU GMP Anexo 1 (2022), são referências obrigatórias para a indústria que fabrica medicamentos estéreis.
O trabalho mostra que a esterilização terminal é, sempre que possível, o método preferencial, pois oferece maior garantia de eliminação de contaminantes. No entanto, quando inviável, o processamento asséptico deve ser conduzido em ambientes controlados, sob monitoramento contínuo e com pessoal altamente treinado.
Estrutura e ambiente: a fábrica como barreira
Uma das reflexões centrais do TCC está no papel do ambiente de produção como primeira barreira contra a contaminação. As chamadas “salas limpas”, regidas pela ISO 14644, são projetadas para reduzir ao mínimo a presença de partículas e microrganismos.
O projeto arquitetônico de uma planta de estéreis não pode permitir frestas, cantos vivos ou materiais que favoreçam acúmulo de partículas. A climatização com pressão positiva, cascata de ar entre antessalas e áreas produtivas, além do uso de filtros HEPA, compõem um sistema que protege não só o medicamento, mas também o operador.
Vale destacar ainda a importância das rotinas de limpeza e sanitização. O rodízio de desinfetantes, incluindo esporicidas, foi apontado pela autora como prática essencial para evitar a resistência microbiana, um risco crescente nas últimas décadas.
Pessoas: o elo mais vulnerável
Se há consenso entre todos os especialistas revisados, é que o maior risco de contaminação está nas pessoas. O operador que adentra uma sala limpa é, ao mesmo tempo, parte da solução e parte do problema.
O estudo da Karina resgata que a qualificação contínua do pessoal é indispensável. Mais do que seguir procedimentos, é preciso compreender o “porquê” de cada medida. O simples ato de vestir corretamente os EPIs, respeitar fluxos de entrada e saída ou manipular materiais dentro de cabines grau A pode ser decisivo para manter a integridade de um lote.
Nesse ponto, a autora lembra que o compromisso com a esterilidade não é apenas técnico, mas também cultural. Uma cultura de qualidade forte, disseminada em toda a empresa, garante que o controle de contaminação não seja visto como obstáculo, mas como responsabilidade compartilhada.
Rastreabilidade e controles em processo
O TCC aprofunda-se também na necessidade de rastreabilidade total. Do recebimento das matérias-primas ao produto acabado, cada lote deve ser documentado com precisão, permitindo investigações rápidas em caso de desvio.
O controle em processo, por sua vez, envolve testes de esterilidade, endotoxinas e partículas visíveis, além de simulações assépticas. São ensaios que, embora custosos e demorados, reduzem significativamente a probabilidade de falhas não detectadas.
Vale reforçar o papel da água – insumo fundamental para a produção de estéreis – que deve ser tratada por destilação ou osmose reversa, além de constantemente monitorada quanto à carga microbiológica.
Farmácias magistrais e a responsabilidade adicional
Embora a maior parte das discussões se concentre na indústria, Karina também aborda as farmácias magistrais que manipulam medicamentos estéreis sob demanda. Nesse cenário, a responsabilidade é redobrada: produzir formulações individualizadas, muitas vezes para pacientes imunossuprimidos ou em tratamento crítico, exige o mesmo rigor aplicado a grandes fabricantes.
A RDC 67/2007 estabelece padrões mínimos para manipulação de produtos estéreis, no entanto, ainda há desafios na implementação plena das normas em um setor tão pulverizado.
Gestão de risco e a CCS
Um dos pontos mais atuais da revisão bibliográfica apresentada pela Karina é a integração das diretrizes do ICH Q9 (Gestão de Risco de Qualidade) e do ICH Q10 (Sistema de Qualidade Farmacêutica) ao contexto dos estéreis.
O conceito de Contamination Control Strategy (CCS), introduzido pelo EU GMP Anexo 1, estabelece que cada fabricante deve identificar seus pontos críticos de contaminação e definir estratégias específicas para mitigá-los. Trata-se de um avanço importante, pois reconhece que não existe uma solução única: cada processo, cada planta e cada produto exigem medidas personalizadas.
A automação surge, nesse contexto, como uma aliada. Sempre que possível, processos automatizados substituem o contato humano, reduzindo um dos principais vetores de risco.
Desafios e perspectivas
A reflexão final proposta pela aluna, e que merece destaque, é a consciência de que, mesmo com todos os controles, a produção de estéreis sempre carregará riscos. Erros de formulação, instabilidade de suspensões ou falhas em conservantes podem comprometer o produto. O papel do farmacêutico, do auditor e do gestor de qualidade é antecipar esses riscos e implementar barreiras eficazes.
Nesse sentido, a análise de causa raiz dos desvios e a implementação de planos de ação robustos são ferramentas indispensáveis. Mais do que corrigir problemas, trata-se de aprender com eles e evitar recorrências.
O TCC de Karina Nicolau Dorna Silva reafirma que o controle de contaminação em medicamentos estéreis não é apenas requisito regulatório: é compromisso ético com a vida. Cada detalhe, da escolha da matéria-prima à liberação do lote, deve refletir a consciência de que o paciente, muitas vezes fragilizado, confia integralmente na qualidade do medicamento que recebe.
Na condição de diretor do CDPI Pharma, sinto orgulho de ver trabalhos como esse, que unem fundamentação acadêmica sólida com aplicabilidade prática. É essa a missão de nossa instituição: formar profissionais que compreendam a complexidade do setor farmacêutico e que estejam preparados para tomar decisões críticas, sempre com foco no paciente.
A excelência no controle de contaminação não é uma meta a ser atingida; é um caminho a ser percorrido diariamente. Enquanto houver risco de falha, haverá espaço para aprimoramento. E é esse espírito de vigilância constante que mantém viva a essência da indústria farmacêutica: salvar vidas com segurança e eficácia.
Para ler o TCC completo de Karina Nicolau Dorna Silva, clique AQUI.
Ricardo Serrato é diretor do CDPI Pharma
Como se qualificar
Para quem deseja se aprofundar no tema, o CDPI disponibiliza a Pós-Graduação em Gestão da Qualidade e Formação de Auditores com Ênfase em Análise de Riscos, que reúne as principais referências no assunto, para construir um curso de capacitação e formação de auditores, contemplando as principais ferramentas e características necessárias exigidas pelo tema como a RDC 658/22, ICH Q9 (gerenciamento de risco) e ICH Q10 (sistema da qualidade). É a única pós-graduação que aborda o tema de Autodiagnóstico, tão valorizado como alto nível de maturidade pelo olhar do sistema de Vigilância Sanitária.
Além disso essa Pós-Graduação trará ênfase na Análise e Gerenciamento de Risco da Qualidade, conhecida como ICH Q9, e que faz parte de um conjunto de Guias da Qualidade produzido pelo Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH).
Para saber mais sobre a pós-graduação Gestão da Qualidade e Formação de Auditores com Ênfase em Análise de Riscos, clique AQUI.
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