Entenda o ciclo de vida do produto farmacêutico

POR EGLE LEONARDI E JÚLIO MATOS
Os produtos desenvolvidos pela indústria farmacêutica já nascem com data prevista para ser retirados do mercado. É o que se denomina de obsolescência planejada ou, simplesmente, a trajetória completa, o ciclo de vida do produto. Esse ciclo pode ser resumido, mas não limitado, em cinco etapas: idealização, desenvolvimento, comercialização, maturação e declínio.
 
“Com o desenvolvimento das pesquisas aparecem, cada vez mais, novos medicamentos que contribuem para aumentar a expectativa de vida do homem, no entanto, abreviam a vida dos produtos farmacêuticos atualmente disponíveis. A expectativa de vida dos medicamentos tem diminuído nas últimas décadas, sendo pouquíssimos aqueles que vêm estendendo sua vida”, conta o diretor do CDPI Pharma – Centro de Desenvolvimento Profissional Industrial e diretor do Ephar – Instituto Analítico, Poatã Casonato.
 
Um exemplo de medicamento com vida útil prolongada é a aspirina, que sobrevive no mercado há, aproximadamente, oito décadas. Os homens vivem muito mais do que muitos medicamentos, logo, o arsenal terapêutico de uma geração é completamente diferente do arsenal da geração anterior e, consequentemente, da geração futura.
 
“Para falar de ciclo de vida de produtos precisamos entender o contexto histórico da indústria, não apenas a farmacêutica. Precisamos entender que a indústria, por si só, vem adentrando na 4ª Revolução Industrial, a revolução dos dados, da conectividade de dados. Tudo, hoje, gira em torno de dados, utilizados para a tomada de decisão inteligente”, ressalta o professor do CDPI, Rafael Fernandes.
 
Também conhecida como era da Indústria 4.0, a 4ª Revolução Industrial trata da convergência das tecnologias da informação, da inteligência artificial, da nanotecnologia e da biotecnologia para aplicações produtivas em tempo real, descentralizadas e automatizadas, e envolve a convergência de pessoas, dados, sistemas, de criação e implementação de processos informatizados autônomos. É sobre como automatizar e integrar todos os aspectos de um negócio.
 
De acordo com Fernandes, a tomada de decisão inteligente tem a ver com economia de verbas, segurança de processos e, ao final de toda a cadeia avaliativa de dados, ter produtos da mais alta tecnologia e eficiência. O professor reitera que, quando se fala de ciclo de vida dos produtos, não se pode deixar de mencionar as etapas desse ciclo.
 
Fases
 
De acordo com o professor do CDPI Pharma e coordenador de Assuntos Regulatórios da Libbs, Alexandre Cruz Buchalla, a idealização, o início do ciclo de vida do produto, engloba todo um processo de viabilidade, seja financeira, comercial, técnica ou do negócio. A ideia sendo viável dá início ao processo de desenvolvimento, em todas suas categorias, quer seja analítico, farmacotécnico, galênico, entre outros.
 
“A ideia se transforma em projeto, que ao final do desenvolvimento gera um produto que deve conter todos os requisitos necessários para a comprovação de qualidade, segurança e eficácia, e com isso nos habilita ao envio de avaliação do órgão regulador e, com sua aprovação, a permissão de comercialização”, explica Buchalla.
 
Com o passar dos anos da comercialização do produto, e com práticas estabelecidas como farmacovigilância, estudo clínico de fase IV e estudos de mundo real, uma quantidade enorme de informação daquele produto se torna acessível, o que pode demandar alterações no seu perfil técnico aprovado – o pós-registro. Segundo Buchalla, o controle desses pós-registros são fundamentais para manter a qualidade, segurança e eficácia do produto na sua maturação.
 
“Chega um momento que o produto já não faz mais sentido estar no mercado, seja pela vinda de uma molécula mais nova com maior poder e menos efeito colateral, seja pelo desenvolvimento de uma nova alternativa farmacêutica, enfim, chega um momento em que as empresas deixam de produzir alguns medicamentos e promovem o cancelamento do seus registros junto à agência reguladora”, diz Buchalla.
 
Todas as etapas do ciclo de vida do produto devem ser tratadas com igual importância, uma vez que todas, se mal realizadas, podem ser responsáveis por algum risco à saúde pública.
 
“Agora se eu tivesse que escolher uma para dedicar maior atenção escolheria a fase de desenvolvimento. Essa escolha está alinhada com as novas legislações nacionais e internacionais que focam no detalhamento de relatórios de desenvolvimento para evitar, com isso, alterações pós-registro desnecessárias e para garantir uma qualidade maior ao processo, uma robustez maior. Isso gera um controle e conhecimento ao produto e espera-se, com isso, a diminuição de eventos adversos e possível falta de produto no mercado”, aponta Buchalla.
 
Normas e guias
 
A RDC 301/19, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi publicada com o objetivo de adotar as diretrizes gerais de Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos do Esquema de Cooperação em Inspeção Farmacêutica (PIC/S), como requisitos mínimos a serem seguidos na fabricação de medicamentos.
 
“A principal novidade com essa RDC é que o sistema de qualidade passou a monitorar integralmente o sistema de desenvolvimento, e isso é muito bom, porque é o que vai garantir, daqui para frente, cada vez mais produtos com segurança, eficácia, qualidade e principalmente robustez”, destaca Fernandes.
 
Segundo o professor, para entender o ciclo de vida dos produtos é necessário antes compreender os guias e diretrizes do Conselho Internacional de Harmonização de Fármacos para Uso Humano (ICH). O ICH é o principal fórum mundial de harmonização de requisitos técnicos composto por autoridades de regulação e indústria farmacêutica.
 
Em síntese, para a compreensão do ciclo de vida do produto farmacêutico o profissional precisa ter em mente os seguintes guias:
· Q7, que trata das Boas Práticas de Fabricação (BPFs);
· Q8, que traz a aplicação do conceito de Quality by Design (QbD);
· Q9, que se refere a gerenciamento de risco;
· Q10, sobre sistema da qualidade farmacêutica;
· Q11, sobre desenvolvimento de insumos farmacêuticos, e
· Q12, que integra todos os anteriores, fazendo o gerenciamento completo de ciclo de vida de produtos.
 
Fernandes explica que o Q7 trouxe uma abordagem muito importante relacionada a BPFs dos fabricantes, o que resultou nas indústrias possuírem, atualmente, equipes dedicadas para tratar legados de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs).
 
O Q8 é um dos mais importantes quando se refere à pesquisa e desenvolvimento, pois abrange todo o contexto de QbD. “O Quality by Design é um conjunto de procedimentos adotados de maneira sistemática e com risco calculado, para o entendimento pleno de todas as etapas que resultam na concepção e controle de produtos e processos”, explica Casonato.
 
O diretor do CDPI Pharma complementa que o QbD possibilita identificar, com auxílio de ferramentas estatísticas, os parâmetros críticos relacionados às características físico-químicas do fármaco, comportamento dos excipientes e do próprio processo que resultam em um produto com as características predefinidas desejadas.
 
 
O Q9 está relacionado com a análise de risco, que pode antever riscos de desvios, minimizar perdas e gastos financeiros para ajustar esses desvios da qualidade. A análise de risco traça todo o panorama no processo industrial.
 
“Para mim, tanto o Q8 quanto o Q9 são ferramentas para serem aplicadas nos projetos a fim de facilitar o controle das etapas do ciclo de vida do produto e evitar alterações desnecessárias depois da obtenção do registro. Ou seja, o impacto é positivo para a qualidade, segurança e eficácia dos produtos farmacêuticos, mas entendo que pode, inicialmente, trazer um impacto negativo financeiro para empresas que não mudaram ainda essa percepção, portanto, para mim, trata-se de um impacto cultural, mudança do modus operandi”, afirma Buchalla.
 
Ainda segundo o professor, outro impacto positivo é o reconhecimento fundamental da importância do sistema da qualidade dentro da indústria, o profissional de qualidade recebendo sua devida importância.
 
De acordo com Fernandes, não menos importante que os demais, o Q12 está ligado a registrar cada etapa do desenvolvimento do produto, para garantir sua qualidade e que seja monitorado se cada etapa está se cumprindo.
 
O Q12 é focado no gerenciamento do ciclo de vida do produto, em processos que já foram transformados pela introdução QbD em todas as fases de desenvolvimento e operações comerciais. A Anvisa divulgou no início de 2019, com a formalização da sua adesão ao PIC/S que irá exigir da indústria farmacêutica nacional a adoção de abordagens robustas, do ponto de vista da ciência farmacêutica utilizada e de formalização da avaliação dos riscos numa ótica do ciclo de vida. O ICH Q12 e o atual enquadramento regulatório mundial irão ver uma aceleração sem precedentes no quadro regulatório brasileiro.
 
Desafios
 
Para Buchalla, tempo e conhecimento são os grandes desafios dos processos que envolvem o ciclo de vida dos produtos farmacêuticos. De acordo com o professor, a indústria farmacêutica trabalha como a ‘corrida do ouro’, quanto mais rápido for seu tempo entre a idealização e a comercialização, mais rápido se conseguirá tratar da saúde pública e mais rápido haverá retorno financeiro.
“Entretanto, para ter um bom desenvolvimento não podemos ter pressa, ainda mais quando se trata de uma inovação, em que o conhecimento ainda pode ser escasso. Nesses casos, o tempo se torna seu inimigo dependendo dos interesses”, pondera Buchalla.
 
O professor finaliza dizendo que se deve encarar os guias do ICH como ferramentas positivas para que cada vez mais sejam comercializados produtos de qualidade e condizentes à saúde pública.
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